O sol prolonga os dias. Assim como no outono, no inverno, na primavera passada, porém, continuamos, em pleno verão, com nossos rostos cobertos. Escondemos nossos traços mais marcantes como se, assim, o vírus não nos reconhecesse, se confundisse. E é assim mesmo que acontece, uma espécie de camuflagem necessária.
Há um ano que a vida de todos nós é uma comunicação vendada. A oralidade escondida pelas máscaras, a voz em tom mais elevado para que sejamos compreendidos. Os olhos e as mãos ganharam mais importância, a geografia do olhar e dos gestos como territórios promovidos em nossa frágil convivência.
Desço a avenida para ir ao mercado. A maioria daqueles que compartilham a calçada comigo usa máscara. Há uns poucos que ignoram a proteção. Agem como se não houvesse uma pandemia, vivem numa fantasia débil e retroativa, o tal do negacionismo. Sou tomado de raiva, mas avanço em meus passos, logo meus olhos os perdem de vista.
Mais adiante, um carro estacionado. Dentro dele, um motorista recém-chegado da rua higieniza as mãos com álcool antes de dar a partida. É como se aquela cena anterior, de rostos nus e negligentes, fosse redimida subitamente por esse meu herói anônimo e momentâneo. Obrigado, meu amigo que jamais reencontrarei, ainda há muita gente que protege a si e aos outros.
Os pequenos atos, esses segundos comezinhos dos dias, são neles que depositamos a maior parte de nossas vidas, são eles que esqueceremos ali adiante, a memória dedicada muito mais aos grandes acontecimentos. Mas ali estão, nesses pequenos atos, a contaminação e a salvação desse vírus, desse inimigo invisível que nos ronda o tempo inteiro.
Chego à rua do mercado. O sol agora me atinge por inteiro, as sombras da rua morrem neste horário. Guaíba ainda é uma cidade que consegue driblar as sombras, cujas ruas ainda nos presenteiam com bastante sol.
Não sei até quando isso vai durar, esses que mandam na cidade há muito tempo devem ter planos verticais para nossa orla, enxergam certamente lucros do tamanho da beleza natural que dispomos e que precisará ser descaracterizada para que eles consigam encher ainda mais seus bolsos. O rosto da cidade, então, será vendado por máscaras que protegem somente uma minoria e seus interesses. Essa sim, uma camuflagem covarde e desnecessária.
Enquanto isso, sigo caminhando, sigo usando máscara, sigo com saudades dos amigos que não encontro há pelo menos um ano, sigo acompanhando com mais temor do que esperança esse futuro breve que nos aguarda aqui no sul do mundo. Sei que não estou sozinho. Nesse sol que ainda prolonga nossos dias, vejo meus companheiros de existência levando suas rotinas da maneira que podem, hibernando seus rostos para protegerem até mesmo quem não conhecem, resguardando dentro do peito a certeza de que ainda voltaremos a enxergar a multidão de sorrisos que a pandemia nos sonegou.