Estávamos no galpão, Dom Barulho e eu...
Rasqueteava um mouro tapado enquanto ele dava jeito num buçal partido que era trança de seis. Ele preparava os tentos e me olhava vez por outra pra ver se eu fazia tudo a preceito.
Essas coisas de avô pra neto, que tenta sempre fazê-lo entender a qualidade devida e atenção velada ao serviço, seja ele de qualquer tipo.
Rasqueteava, assoviava uma coplita serena e o velho preparando mais um tento, consertava o buçal.
“Mais tarde vamos ao campo, tem que buscar a terneirada pra posar na mangueira que amanhã é banho e vacina.“
Falou como quem dissesse pra que eu não me demorasse, afinal tínhamos compromisso e a lida não dá folga, nem pra matuto de folga.
Terminamos praticamente juntos as tarefas e sem pestanejar já vem o grito de encilhar.
Encilhei o mouro enquanto Dom Barulho levava a tordilha pra fora, ele tinha uma mania de pedir pra eu “cantar” pra ele tudo que eu usava, pra saber se eu tinha aprendido a encilhar.
Lá ia eu como se cantasse uma chimarrita: “Na boca o freio, afirma a barbela, no lombo o baixeiro, depois a carona, o basto e a cincha, ajeitando os loro, um pelego bueno, badana novinha depois vai por cima a tal da sobre-cincha que bem aperta firme, laço nos tentos, chapéu de aba larga, alçando a perna já vamos pro campo. “
Não tem métrica, nem rima, mas era assim que aprendi, cantava a copla que meu avô me ensinou pra nunca mais esquecer das encilhas de um cavalo.
Ele ficava faceiro me ouvindo e mais ainda quando saíamos pro campo com o cavalo encilhado por mim com a cantiga dele.
Fomos num trotezito firme de socar paçoca até o campo do lado, perto da vila onde tem uma cruzada.
Apeamos e passamos pra diante num capão de mato, meu avô queria prosear. Me disse para fechar os olhos e relatar tudo o que eu ouvia.
Falei dos pássaros, do vento batendo nos gravatá, nas tambeiras mugindo ao longe, um tajã que canta matraqueiro e uma carroça que se aproximava, provavelmente na cruzada.
Ele me pediu pra manter os olhos ainda fecha e indagou se eu conseguia ouvir a carroça e dizer se estava cheia ou vazia.
Abri os olhos de arregalar e me assustei. Como saberia se estava cheia ou vazia a carroça só ouvindo. Dom Barulho estava de brincadeira.
Me acalmou como só um avô sabe fazer com seu neto e disse calmamente, pra que eu prestasse bem atenção e talvez, saberia responder.
Foi um exercício medonho, me esforcei e desisti. Respondi que talvez não tenha entendido a questão.
Quase que num ar de ironia, meu avô respondeu, primeiramente pediu que eu guardasse pra vida toda a explicação, em seguida entregou sua filosofia campeira de toda a alma.
“Tu não escutas barulho de molas, o madeirame batendo, as tábuas de vez em quando desajustadas ringindo e os solavancos do banco do condutor?
Pois escutando isso saiba que essa carroça vem vazia, sem nenhum conteúdo mas numa barulheira longínqua e matraqueira que vai longe sua melodia de desajustada. Quanto mais vazia a carroça, mais barulho ela faz.
Assim são as pessoas nessa vida, algumas vem cheias e sem alarde, entregando conteúdo e indo carregada para a próxima parada. Tem também as vazias, que não trazem nada mas fazem uma barulheira pra ensurdecer qualquer um, sem nada a acrescentar em nossas vidas.
Cuide como andas pelas cruzadas meu neto, sem conteúdo pode cair na armadilha de falsos alardes. “
Aquilo não precisou de repetição, me entrou na mente de uma forma tão profunda que hoje, ao ver as carroças sem conteúdo gritando pelas cruzadas, lembro das lições daquele rude avô, um velho que sem cultura formal apresentava conteúdo ímpar.