O samba fala por si. Nunca precisará que discursemos por ele. A intenção, aqui, portanto, é sim transitar nos corredores de sua poesia, vagar com a escrita por essas melodias multicolores como quem caminha pela madrugada entoando algumas das mais belas canções da música brasileira, recuperar o tempo em que podíamos nos perder nos braços dos amigos, embriagados todos e despedindo-nos todos de algum bar remoto em direção às promessas finais da noite.
O samba, Paulinho, Nelson, Elton, Cartola e tantos outros bambas ensinam há muito tempo, é um idioma feito de saudade e de esperança.
“A sorrir eu pretendo levar a vida / Pois chorando eu vi a mocidade perdida”, Cartola e Elton Medeiros.
A voz negra bela triste de Cartola reverbera nas caixas de som o mais antigo dos cantos de amor. A pele escura e bela de um amor enlutado, a dignidade de reconhecer que mais uma vez a derrota soa forte no peito. A derrota do peito, porém, afirma no samba de Cartola uma vitória maior do que a própria a vida: admitindo que perdeu para o amor e fazendo do próprio revés um hino de despedida e de boas-vindas à solidão que se avizinha, Cartola reacomoda as arestas do passado, embriaga o corpo e o espírito de poções distintas e, assim, abre uma brecha de eternidade no tempo, o que somente a grande arte pode fazer.
“Vingança, meu amigo eu não quero vingança / Os meus cabelos brancos me obrigam / A perdoar uma criança”, Nelson Cavaquinho.
Abaixo dos olhos desolados de Nelson Cavaquinho, tingida pelo mesmo cobre que domina a pele de seu corpo e que se ausenta apenas dos cabelos brancos, há uma escadaria de olheiras. Cada degrau como a materialização das dificuldades que a vida lhe trouxe. As lágrimas e o trago como cimentos inaugurais. O sambista que melhor e que com mais beleza cantou a morte, ele mesmo que parece ter morrido tantas vezes em vida, encontra a beleza justamente nas ranhuras da existência, no terreno desconhecido daqueles que ainda vivem, cantando previamente a memória sua que sobreviverá quando ele se for, no coração dos que ficarem (dos que, enfim, ficaram). Mesmo diante da traição do amigo com a mulher amada, a impossibilidade de forjar vingança. Cabe ao tempo, o mesmo senhor sábio que afastou dia após dia a cor dos cabelos de Nelson Cavaquinho, se encarregar dessa implacável punição.
“Quem sabe de tudo não fale / Quem não sabe nada se cale / Se for preciso eu repito / Porque hoje eu vou fazer, do meu jeito eu vou fazer / Um samba sobre o infinito”, Paulinho da Viola.
Paulinho sabe o caminho para o infinito. E sabe Paulinho que ele se constrói na contramão de nossos dias, na contenção da beleza, como quem fotografa os humores do tempo. Há gente que fala demais. Há gente que sabe de tudo demais. Há pouco silêncio e espaço para que se possa simplesmente ver o que se apresenta ao redor, aguardar que a passagem dos objetos e dos seres carregue consigo os ponteiros arrastados da paixão moribunda, trazer algum alento ao peito, e então reparar na moldura que o horizonte desenha: o infinito é sempre visível aos olhos quando habitamos o samba de Paulinho.