Todo o lugar possui na sua culinária elementos e temperos próprios. A elaboração de pratos reflete os recursos naturais, vegetais ou animais, encontrados de preferência na sua região. A história da alimentação está repleta de exemplos. Em nosso município não seria diferente. Na coluna de hoje resolvi falar sobre um dos alimentos típicos de Guaíba: o Matambre de Tropeiro, principalmente pela sua historicidade.
Desde minha tenra infância conheço este alimento feito à maneira de um assado no espeto como o churrasco é feito. Quando jovem, entendia que este era um alimento comum às famílias no Rio Grande do Sul. Todavia, com o passar do tempo não encontrava essa receita em outro lugar a não ser em Guaíba e em algumas poucas casas, pois a era das charqueadas aqui já havia passado. O conhecimento sobre esse modo de fazer o matambre permaneceu restrito a alguns descendentes dos antigos tropeiros e àqueles que haviam convivido e aprendido com eles.
Os tropeiros que trabalhavam com o gado não tinham hora certa para fazer as refeições. Esses homens recebiam permissão do dono da tropa para retirar a peça da rês chamada matambre, que é um músculo que recobre as costelas. Quando retirado não desfigura a carcaça. Cada rês dispõe de duas peças de matambre, uma de cada lado, chamada de “parelha de matambres”.
Por essa razão e porque era uma carne de rápido preparo, tornou-se o alimento preferido dos tropeiros. Antes do animal ser abatido já escolhiam o matambre do boi mais gordo da tropa, o matambre de vaca não era escolhido por ser muito fino o que deixava o assado muito rígido.
Por volta de 1954, meu pai, Gaston Leão, conhecido pelo apelido de Gui era um jovem adolescente com 16 anos, que por gosto e curiosidade acompanhava as lides dos antigos tropeiros da cidade de Guaíba. Ele vivenciou essa prática gastronômica. Matambre vem de duas palavras da língua espanhola – “mata hambre”, que significa “mata a fome”. Segundo Gaston Leão, essa receita era feita somente entre os tropeiros que atendiam o Saladeiro e Matadouro São Geraldo, também conhecido como Matadouro Linck, localizado no bairro Ermo.
O relato de meu pai refere-se à época em que o estabelecimento era arrendado da família Linck, pelo Sr. Mário Lessa, que autorizava que fosse entregue aos tropeiros peças de carne como o matambre e o sangradouro que poderiam ser retiradas sem precisar abrir a carcaça do bovino. O mondongo e a tripa grossa também eram cedidos aos trabalhadores. Todavia, essas partes do bovino eram levadas para as suas casas a fim de serem preparadas como comida de panela. O matambre e o sangradouro estavam sempre à disposição para as suas refeições no local de trabalho.
O MOVIMENTO COM O GADO
Havia diferentes horários para a chegada das tropas o que poderia ocorrer tanto a noite como durante o dia. Sendo assim, os tropeiros ficavam aguardando para o pronto manejo com o gado. Alguns dos motivos para o movimento com o gado eram: pesar todo o gado vindo por terra ou pelo Lago Guaíba e levá-los para as chamadas “invernadas de espera”, todas pertencentes à família Linck. Essas invernadas existiam ao redor da cidade. No total havia seis invernadas assim distribuídas e denominadas:
- A 1ª e 2ª Invernadas eram localizadas lado a lado e se estendiam da Rua das Flores (Rua 20 de Setembro) até a BR 116. A 1ª Invernada ocupava a área onde hoje temos o bairro residencial, “Parque do 35” e a 2ª Invernada era conhecida por “Campos do 35”, onde encontramos o prédio do Fórum e da Secretaria Municipal de Saúde entre outros.
- A 3ª e 4ª Invernadas estavam do outro lado da BR 116, onde temos a Estrada Santa Maria, indo em direção a BR 290. A 4ª Invernada localiza-se onde hoje é o bairro “Jardim dos Lagos”.
- Do lado oposto à Invernada dos “Campos do 35”, atravessando a Av. Nestor de Moura Jardim ficavam a Invernada do “Logradouro ou da Ramada” e a “Invernada do Coqueiro”, onde atualmente se encontra o bairro “Moradas da Colina”. Estas últimas não eram citadas através de números como as demais.
Todas as tardes o gado era apartado e levado para o abate. O trajeto utilizado para conduzir a tropa era sempre o mesmo, isto é, passavam pela Estrada do Logradouro ou da Balança, hoje Av. Nestor de Moura Jardim; atravessavam o Cerro da Passagem, hoje Rua Gen. Neto, com continuação na Rua Dr. Rodolfo Zenker, indo a tropa direto para o potreiro e mangueiras do Matadouro, denominados popularmente de “Invernada do Fim”, localizada aos fundos do histórico prédio. Ao terminar desta jornada os tropeiros escolhiam o animal mais gordo para dele serem retirados a parelha de matambres com aproximadamente 3Kg cada um, o que alimentava de oito a dez homens. Os animais abatidos tinham entre 4 a 5 anos, pois não havia o abate do animal precoce como hoje.
O SABER FAZER
Os matambres eram assados aproveitando as brasas retiradas da caldeira do Matadouro, o que era feito com uma pá de cabo muito comprida tendo mais ou menos 2,5 m. Por vezes, os tropeiros comiam o matambre em lugares fora do Matadouro. Por exemplo, quando havia um estouro de tropa longe do prédio do matadouro a carne era levada para ser assada no lugar onde estava havendo o recolhimento desse gado. No princípio o matambre era assado apenas com o sal grosso, a receita era feita sem o uso da farinha de mandioca que veio a ser agregada mais tarde ficando assim mais saborosa por sua crocância.
Depois do fechamento do Matadouro (1972) o matambre passou a ser feito nas casas dos ex-tropeiros e seus descendentes sendo adquirido por compra nos açougues.
Gaston citou poucas famílias que faziam o matambre como: a família de Afonso Trindade – Ermo, de Manoel Honório da Silva (Tico) - Ermo, de Pedro Carvalho – Ermo, de Francisco (Chico Tropeiro - Logradouro) e do próprio Gaston Leão – Centro. Provavelmente outras famílias descendentes de outros trabalhadores do matadouro, aqui não citadas, conheciam essa iguaria local.
No ano de 2005, por motivo de formação visando o turismo, o SEBRAE em parceria com o município esteve prestando assessoria aos empresários do ramo da alimentação na cidade. Na época se realizou uma demonstração de como era feito o matambre (preparado por Gaston Leão). Após a degustação, os assessores técnicos do SEBRAE citaram que nunca haviam provado em nenhum outro lugar do Rio Grande do Sul o matambre assado ao modo como em Guaíba era feito. Hoje a receita já está bem mais difundida, garantindo a manutenção deste saber.
RECEITA DO MATAMBRE NO ESPETO
Ingredientes:
• 01 matambre de novilho (hoje não se abate mais animais de 4 a 5 anos como no passado)
• Sal grosso
• Farinha de mandioca
Modo de preparo:
Espetar o matambre simetricamente ao meio procurando o ponto de equilíbrio com a cabeça do matambre (parte grossa) em direção a ponta do espeto. Colocar sal sobre a carne dos dois lados. O matambre vai ficar caído como se fosse um “pedaço de pano” no espeto. Ao colocar sobre as brasas deixar a parte sem gordura receber o calor primeiro, dessa maneira o matambre vai encolhendo, encorpando e se abrindo. Quando firmar e não balançar mais ao se mexer no espeto, vira-se para o outro lado ficando a parte gorda em contato com o calor da brasa. Se for preciso pode virar mais vezes até ele ficar na posição horizontal e totalmente aberto.
Quando a gordura dourar e estiver quase pronto, bater levemente para tirar o excesso de sal e colocar a farinha de mandioca dos dois lados e em boa quantidade. Virar a farinha com o espeto sobre uma gamela para que caia a farinha em excesso e após levar novamente ao fogo. Primeiro com a parte magra para baixo até tostar levemente a farinha, após repetir a ação com o lado da gordura para baixo esperando também tostar a farinha. A farinha serve para selar o matambre conservando o suco da carne e deixar crocante.
Servir o matambre no espeto, cortando-o em tiras finas de cima para baixo. Deve ser apreciado de imediato e de forma solidária.
Tempo de preparo: Em torno de 1 hora.
OBS: A denominação “Matambre de Tropeiro” sempre foi usada por Gaston Leão para identificar e diferenciar de “Matambre no Espeto” ou simplesmente “Matambre”, o que sugere outros modos de fazer essa carne.
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