Era uma quarta-feira de sol, com céu azul e sem nuvens, popularmente falando, poderíamos dizer que o dia estava com o céu de brigadeiro. Eram nove horas da manhã e já fazia muito calor. Pela orla da Praia da Alegria, na Zona Sul de Guaíba, pessoas caminhavam, andavam de bicicleta ou simplesmente estavam sentadas apreciando a vista, e que vista.
A paisagem da capital dos gaúchos sempre é de tirar o fôlego, mas naquele dia o que chamava a atenção era um barco de pequeno porte, parado às margens do lago visivelmente afetado pela estiagem. Junto a orla, o corpo de bombeiros aguardava: era dois de fevereiro, era o dia de Iemanjá.
Na Avenida Alegria surgiu uma pequena procissão de carros e logo se avista a imagem da rainha do mar em um barco branco, de mais de um metro. Decorado em tons de azul, contendo também pérolas, brilhos, cartas e muitas flores. Era o dia de homenagear a deusa, a sereia, a rainha das águas salgadas.
Resumidamente, o nome Iemanjá (Yèyé omo ejá) vem do idioma africano Iorubá, no qual significa mãe cujos filhos são como peixes. É conhecida como a mãe de todos os orixás, está ligada diretamente a maternidade e a geração da vida. Regente das famílias e lares, é também a divindade protetora dos pescadores e jangadeiros.
A pandemia impossibilitou, pelo segundo ano consecutivo, a realização da tradicional procissão e festa no dia primeiro de fevereiro e que reúne, na areia da Praia da Alegria, milhares de pessoas dos mais diversos lugares. No entanto, essa excepcionalidade em nada afetou o sentimento que rege o coração da Néngua de Nkisi Samba Diá Maza (Mãe Arlete) e de cada integrante do Centro de Umbanda e Candomblé Angola Estrela do Oriente.
Com um número muito reduzido de pessoas e sem qualquer divulgação externa, era o momento de colocar o pé na areia, agradecer e entregar o barco. Quando o som dos atabaques começaram a ecoar, as pessoas, que ali circulavam, pararam para assistir. E com a saudação “odoyá” se iniciou a cerimônia.
Entre canções e danças, a corrente com uma parte dos filhos da casa se formou e após o pedido de licença a Oxum, rainha das águas doces e no qual a cidade é banhada, era hora de acompanhar a chegada da protagonista do dia. Mãe Arlete se posicionou e poucos segundos após o início do ponto, Iemanjá chegou com a sua energia avassaladora.
O cheiro de alfazema predominou no ar e a emoção se torna um substantivo pequeno diante da grandeza de Iemanjá. A mãe de todas as cabeças estava ali e junto dela a imensidão do seu amor, zelo e proteção. É na sua presença que o 44° barco da Estrela do Oriente repleto de presentes, pedidos e agradecimentos começou a ser conduzido no Guaíba em direção a embarcação que levaria até o meio do Lago.
Ao redor da cena principal ouvia-se aplausos e suspiros dos espectadores que pararam para acompanhar. Pessoas com os olhos atentos e emocionados fotografando e até mesmo entrando na água. Tudo para estar o mais próximo possível de Iemanjá. A sensação de paz era impressionante. Quase que instantaneamente, no momento em que baixei o celular (depois de mais uma foto), fui envolvida pelo abraço dela, assim de surpresa.
Aquele momento poderia durar a eternidade e eu estaria feliz, é impossível descrever em palavras o que se sente naquele instante. É uma mistura dos sentimentos mais puros. É amor, serenidade e abrigo. Acima de tudo, ela é lar. Me senti amada, acolhida e energizada. Com uma mensagem curta e muito objetiva, Iemanjá deixou meu coração feliz e em paz.
Recebi a sua benção com muita gratidão e me retirei em estado de êxtase. Não caiu uma lágrima do meu rosto, a sensação que tive é que meu sorriso estava mais largo que o normal e, de fato, estava. Por alguns segundos fiquei parada processando o que tinha vivido e fui tomada por uma alegria que não sentia há muito tempo. Esse é o poder da Rainha do Mar.
Logo a frente haviam fiéis ansiosos esperando uma aproximação para receberem o perfume de alfazema e aquela energia indescritível. Olhos marejados com a saudação “Odoyá, minha mãe”. Algumas pessoas aguardavam desde o dia anterior por este momento. Na esperança de encontrá-la, ali ainda circulavam. Assim, Iemanjá despediu-se. Encerrando a celebração cantaram o Hino da Umbanda.
A Festa de Iemanjá da Estrela do Oriente reúne uma multidão anualmente com pessoas de todos os cantos do estado e do país. Consagrada há anos como uma das maiores da região, naquele momento, parecia pequena. Apenas parecia, pois continuava gigante de energia e beleza. Diante de um cenário de pandemia, a fé se tornou um pilar fundamental.
Como explicar ou traduzir esse fenômeno que move e toca o coração de tantas pessoas? Chego a conclusão que é impossível mensurar algo tão poderoso. O que escrevi aqui sobre aquela quarta-feira poderia ser um sonho ou uma criação de uma quase jornalista, mas foi a mais pura realidade. Vivi e senti na pele cada instante daquela manhã inesquecível.
O dia dois de fevereiro nunca mais será o mesmo. Obrigada, Mãe Arlete. Obrigada por me convidar para acompanhar a entrega do barco.
Confira também o vídeo que eu produzi.
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