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Terça-feira, 30 de Setembro de 2025

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Os esconderijos do rosto

As feições imprevisíveis e suas geografias imaginárias

Os esconderijos do rosto
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As máscaras balançam no varal. Cumprem seu balé adestrado pelos ventos de junho. Mais um outono avança em nossas vidas. Tempo de conhecermos os primeiros frios do ano. Das árvores se despedirem das folhas mais desbotadas. Os outonos costumam pintar quadros naturais que lembram paisagens remotas, desoladas, um passado anterior ao próprio tempo. Como se o mundo se vestisse com roupas muito antigas. Este outono não. Tem um gosto de futuro incerto. E um rosto do qual não reconhecemos boa parte dos traços. Há máscaras demais cobrindo suas faces.

A geografia do rosto sempre me intrigou. Nela reside a maior parte de nossa identidade, a capacidade suprema de nos comunicarmos com o mundo: o rosto do presente. Nela encaixam-se, como num quebra-cabeça assimétrico, as semelhanças com traços de pai, mãe, tios e avós: o rosto do passado. Nela já estão inscritas as linhas que vão desenhar os sorrisos e as tristezas do filho que ainda nem nasceu: o rosto do futuro. Quando esses traços nos são apartados pelo uso generalizado de máscaras, é como se escondêssemos o tempo de nós mesmos.

Tenho um retrato diante de mim. Sentados numa poltrona, em novembro de 1986, meu bisavô Alípio, meu avô João, meu pai Ulisses e eu, um bebê com menos de dois anos de idade. Estou no colo do vô João. Todos olhamos para a foto. Quatro gerações de uma mesma família. Um arquipélago facial. Ilhas que compartilham de acidentes topográficos semelhantes.

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Percorro os territórios daquelas faces. Vô João ensaia um sorriso com os olhos, sorriso que os lábios não cumprem, os dentes velados pela boca fechada. O infante Guilherme leva uma das mãos ao rosto, gesto inconsciente que denuncia alguma curiosidade silenciosa. Alípio, a raiz dessa árvore familiar que desenhamos, parece uma estátua de um mundo pregresso, estático como os mais antigos aprenderam a se portar para não borrarem os retratos de seu tempo. O pai é o único que realmente sorri. Liberta a fotografia da seriedade dos demais.  

Reconheço outra peculiaridade na imagem: há um rosto por trás do retrato, um rosto que não enxergamos, a face daquela ou daquele que empunhava a câmera. A sua presença, porém, está estampada na expressão familiar de nós todos que somos fotografados, especialmente do pai. Uma ausência-presente desenhada em nossos olhos. Possivelmente, minha avó Maria e seu rosto ameno, maternal, acolhedor.

Outro dia me peguei tentando adivinhar os rostos protegidos por máscaras com os quais cruzava na rua. Desenhava mentalmente o traço mais coerente com a parte ainda exposta de olhos, orelhas, uma fatia do nariz. Um exercício inofensivo que talvez buscasse resgatar alguma normalidade para tempos tão anormais. Dar algum sentido familiar para a deformidade social que vivemos. Subia a São José imerso nessa empreitada. Faces desconhecidas lentamente se aproximando e, aos poucos, ganhando contornos imaginários por debaixo das máscaras que ostentavam.

Até que travei num deles. Tentava encontrar a linha mais óbvia e natural para aquele que vinha em minha direção. E nada. Quando já quase nos cruzávamos, minha caneta mental esgotada de traços e feições, me dei conta do velho amigo que tinha em minha frente, os olhos sorrindo por sobre a máscara. Máscara que me fez estranhar uma face que sempre me foi tão íntima. Esses tempos incomuns que confundem até mesmo nossas mais sagradas memórias.

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Apanho a máscara. Vou até o espelho da sala. Antes de vesti-la, observo a figura refletida diante de mim. Persigo as faces do passado que me imaginavam antes mesmo de eu nascer. Vejo as expressões do presente que me conectam ao mundo de hoje. Intuo o rosto do filho que ainda não desenhei. Quando abro a porta e ganho a rua, ouço um sibilo no sopro que embala os galhos das árvores mais altas, cantorias insondáveis da estação. As máscaras seguem seu balé repetitivo no varal. Parecem bandeirolas de um São João particular, solitário, isolado. Abanam para ninguém. Os ventos de junho soprando pelos pátios, pelas ruas, pelo mundo. Tenho mais algumas semanas de um outono imprevisível por viver. E muitos rostos para ainda desenhar.

FONTE/CRÉDITOS: Francesco Ungaro/Pexels.com
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Guilherme Lessa Bica

Publicado por:

Guilherme Lessa Bica

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