Nesses tempos de desmanches na educação e na cultura, o teatro segue firme na sua incansável batalha para denunciar os abusos e descasos que afetam esses setores responsáveis pela evolução da sociedade.
Há poucos dias tive o prazer de ler a peça Hospital-Bazar, uma das mais recentes obras do consagrado escritor guaibense Altair Martins.
Altair conseguiu manter a excelência de sempre e, com um texto repleto de teatralidade, metáforas e provocações, nos transportar para um universo carregado de personagens e situações absurdas, que atuam em um ambiente aparentemente alegórico. Mas que, caso não fosse pintado com tintas tão familiares e não tivesse o cheiro forte da realidade crua, poderia ser encarado como uma obra surreal. É nesse contexto vertiginoso que a ficção e a realidade se encontram no terreno do 'absurdo' e nos apresentam um recorte do atual processo de desvalorização e sufocamento.
De forma simples, para não trazer spoilers, posso dizer que o enredo da peça mostra, por um lado, a luta da professora-mestra que não quer deixar de dar aulas, contra os agentes de saúde que querem “desmontá-la” para retirá-la da sala de aula e transformar a velha escola em um hospital inovador. Por outro lado, os diálogos nos alertam para a atual política de destruição da educação pública que se manifesta, principalmente, através da acusação leviana de que o ensino é uma ferramenta dentro de um mecanismo ideológico baseado na vulgaridade.
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Nota-se neste embate de forças que, ao mesmo tempo em que se coloca em prática um plano milimetricamente arquitetado para promover o desmanche da educação, são oferecidas soluções ineficientes através da implantação de sistemas mirabolantes e nocivos.
No texto há uma clara e contundente crítica ao Ensino a Distância (EAD) e à proliferação da oferta de atendimento médico com uma roupagem moderna, pouco eficiente e em busca da fidelização de clientes.
Esta nova unidade de hospital-bazar, como o próprio nome indica, seguirá um conceito mais comercial, investindo em salas de espera organizadas que contam com atrativos como uma super máquina de café e um aquário. Tudo pensado para entreter o consumidor que terá a oportunidade de passar horas sentado assistindo ao sofrimento alheio em um ambiente “aprazível”.
Segundo o organizador desse novo hospital, “estudos provam que só a dor e a cicatriz resistem na memória dos tempos” e essas devem ser as prioridades de atendimento.
Para a abertura urgente desse hospital, a professora-mestra deve ser literalmente desmontada e retirada de sua sala de aula que, por sua vez, deve ser transformada imediatamente em uma recepção hospitalar. Mais precisamente, convertida para o Setor da dor e Sala de Cirurgias.
A visão do empreendimento não se importa com a cura e sabe que, caso essa porventura aconteça, não evitará que futuramente o cliente precise voltar devido a outra doença qualquer, mantendo, assim, o sistema sempre pulsante e lucrativo.
O ápice desse novo conceito é a implementação do hospital sem médicos. Afinal, nessa linha de pensamento, máquinas de café são mais atrativas e custam menos:
O INTERVENTOR-CHEFE – É uma máquina de café automática. Funciona com apenas uma moeda.
O DESMONTADOR – Um hospital sem médicos?
O INTERVENTOR-CHEFE – Pra que médicos se temos o hospital? Também não é necessária essa gente toda da saúde. Os doentes precisam entender a noção de fidelidade, e isso não se ganha com a cura. Se ninguém adoecer mais, a higiene terá de fechar farmácias. Toda essa estrutura perde sentido, entende? Adeus máquina de café! Vamos fazer o que com um espaço destes, por exemplo?
O DESMONTADOR – Transformar numa sala de aula?
O INTERVENTOR-CHEFE – Que horror!
A Sala de aula é um espaço simbólico onde acontece essa grande batalha e se apresentam diversas questões que merecem ser abordadas de forma aprofundada e, felizmente, o teatro está sempre disposto a contribuir para isso.
Para encerrar, sem correr o risco de estragar as surpresas desse texto fenomenal, nada melhor do que dar espaço para a fala da Higiene, personagem da peça que anuncia já na sinopse da peça:
A HIGIENE (para o público) - Vivemos em tempos comprimidos, numa constante luta por lugares para viver, adoecer e morrer. Neste mundo de febre intermitente, não há mais sentido para a manutenção de espaços ociosos como bibliotecas, praças, museus e salas de aula.
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Trazemos a patologia empreendedora. Nesta antiga sala de aula, por exemplo, foram abertos novos leitos para que possam ser atraídas novas epidemias. Na constante emergência, na qual farmácias e postos de saúde já não suprem a hipocondria coletiva, tivemos de nos antecipar para atrair o mal futuro. Ninguém precisa mais esperar para ficar doente. Somos a enfermidade agendada, a baixa hospitalar voluntária e a automedicação. Já temos a tosse para o vírus de amanhã. Entendemos que a moléstia é um direito cada vez mais urgente de cada cidadão e que a dor instantânea requer hospitais instantâneos.
Nossa política é a da inclusão sem burocracia.
Há catarro e mosquitos para todos, porque todo diagnóstico deve antecipar o sintoma. E, para que cada um possa aproveitar ao máximo, sendo a mosca que divide a ferida e esfrega as mãos, contamos também com um aquário e uma máquina de café expresso. Por fim, como representante da saúde pública, só me resta anunciar a abertura do que há de mais moderno em termos de espaço epidêmico propositivo: o Hospital-Bazar!
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