As eleições sempre foram tema ou pano de fundo para diversas obras da dramaturgia teatral, televisiva e cinematográfica.
As lutas por poder que orbitam e permeiam o sonho inocente de uma sociedade mais justa e eficiente vêm servindo como matéria prima para tramas que insistem em desnudar a podridão do submundo da alta política nacional.
A comédia, desde sempre, vem se mostrando como terreno próspero para o conteúdo desconcertante que esfrega na nossa cara todo o absurdo de nossos conchavos hipócritas e abusivos. Encontramos a prova disso na produção cênica e cinematográfica levada ao público no decorrer da História e no desenrolar dos diferentes governos.
Um grande especialista no ato de desnudar a sociedade por meio do Teatro foi o advogado, dramaturgo, jornalista e pintor brasileiro França Júnior. Na coluna “Caiu o Ministério, como se fosse uma novidade”, abordei outro texto do mesmo dramaturgo e lá é possível ter um panorama bem interessante sobre o contexto político da época e sobre o sistema governamental do país que ainda era Império. Se lá falei sobre todo o rebuliço de bastidor causado pela troca em um dos ministérios, aqui vou contar para vocês, por meio da análise da peça "Como se Fazia um Deputado", como o autor percebia a eleição de deputados no ano de 1882 (mesmo ano de “Caiu o Ministério”).
A comédia em três atos, representada pela primeira vez em 14 de abril de 1882, no Teatro Recreio Dramático, no Rio de Janeiro, de cara já chama atenção pela lista de personagens onde encontramos figuras como um major, um tenente-coronel, e diversos capangas com nomes bastante sugestivos como Rasteira-Certa, Arranca-Queixo e Pé-de-Ferro. Uma verdadeira e "ancestral" milícia que está disposta a interferir no processo eleitoral local.
A trama se passa no interior da, até então, Província do Rio de Janeiro. No primeiro ato conhecemos o Major Limoeiro. O bem sucedido e poderoso produtor de café, proprietário da Fazenda Riacho Fundo, está à espera de seu sobrinho Henrique Limoeiro, jovem recém titulado bacharel em direito que estava voltando para sua terra natal.
Major Limoeiro, proeminente membro do Partido Liberal, convida o Tenente-Coronel Chico Bento, importante membro do Partido Conservador e rival no campo político, para uma conversa em busca de um acerto que pudesse ser muito vantajoso para ambos.
Preocupados com a eleição que se aproxima, resolvem entrar em um acordo que proporcionasse um deputado que pudesse beneficiá-los independente de que partido estivesse no poder.
Para que possamos entender o quanto isso poderia ser considerado incomum, cabe uma breve descrição do cenário político neste período histórico.
Segundo o mestre em História Rainer Souza, em artigo para o site Brasil Escola, durante o “Segundo Reinado, as tendências políticas brasileiras ficaram essencialmente polarizadas entre o Partido Liberal, de origem progressista, e o Partido Conservador, organizado por políticos de tendência regressista. Nesse contexto, acabamos percebendo que os partidos que se consolidaram no cenário político nacional tinham poucas diferenças entre si. Afinal de contas, grande parte das figuras políticas desse período compartilhava de uma mesma origem social”.
Os dois poderosos discutem sobre armações e atentados ao processo eleitoral em anos anteriores. Chegam (PASMEM!) a citar o caso de um candidato que foi IMPEDIDO DE DISPUTAR AS ELEIÇÕES PORQUE MOVERAM UM PROCESSO CONTRA ELE. “Qualquer semelhança com a realidade (independente da época) é mera coincidência”.
A chegada de Henrique, recebido com uma grande festa animada pelo batuque dos escravos (retratados como dóceis, servis e devotos de seus “brancos”) estabelece o acordo entre as duas velhas ratazanas do poder.
O Liberal e pragmático Limoeiro e o Conservador, com uma erudição duvidosa, definem que Henrique será o candidato que poderá aliar os interesses dos dois, independente de quem dite as regras.
Para isso, além de trabalharem dentro e fora das regras para conseguirem que ele seja eleito, acertam o casamento do jovem advogado com Rosinha, filha arredia e cheia de personalidade do Tenente-Coronel Chico Bento. Esse casamento traria maior respeitabilidade ao futuro candidato e colocaria as duas famílias em uma posição mais próxima ao poder.
O uso da política para o benefício próprio foi bastante explorado pelo dramaturgo. Alguns trechos chegam a assustar pela contemporaneidade das falas. Parece que estamos lendo algo do Século XXI. Preste atenção neste diálogo:
Limoeiro – Tenente-coronel, cartas na mesa e jogo franco. É preciso arrumar o rapaz; e não há negócio, neste país, como a política. Pela política cheguei a major e comendador, e o meu amigo a tenente-coronel e a inspetor da instrução pública cá da freguesia.
Chico Bento – Pela política, não, porque estava o partido contrário no poder; foi pelos meus merecimentos.
Limoeiro – Seja como for, fato é que, apesar de estar o meu partido de cima, o tenente-coronel é e será sempre a primeira influência do lugar. Mas vamos ao caso. Como sabe, tenho algumas patacas, não tanto quanto se diz...
Chico Bento — Oxalá que eu tivesse só a metade do que possui o major.
Limoeiro – Ouro é o que ouro vale. Se a sorte não o presenteou com uma grande fortuna, tem-lhe dado, todavia, honras, considerações e amigos. Eu represento o dinheiro; o tenente-coronel a influência. O meu partido está escangalhado, e é preciso olhar seriamente para o futuro de Henrique, antes que a reforma eleitoral nos venha por aí.
Chico Bento – Quer então que...
Limoeiro – Que o tome sob a sua proteção quanto antes, apresentando-o seu candidato do peito nas próximas eleições.
Chico Bento – Essis modus in rebus.
Limoeiro – Deixemo-nos de latinórios. O rapaz é meu herdeiro universal, casa com a sua menina, e assim conciliam-se as coisas da melhor maneira possível.
Chico Bento (Com alegria concentrada) — Confesso ao major que nunca pensei em tal; uma vez, porém, que este negócio lhe apraz...
Limoeiro – É um negócio, diz muito bem; porque, no fim de contas, estes casamentos por amor dão sempre em água de barrela. O tenente-coronel compreende... Eu sou liberal... o meu amigo conservador...
Chico Bento – Já atinei! Já atinei! Quando o Partido Conservador estiver no poder...
Limoeiro – Temos o governo em casa. E quando o Partido Liberal subir...
Chico Bento – Não nos saiu o governo de casa.
Limoeiro (Batendo na coxa de Chico Bento) — Maganão.
Chico Bento (Batendo-lhe no ombro) — Vivório! E se formar um terceiro partido? ... Sim, porque devemos prevenir todas as hipóteses...
Limoeiro – Ora, ora... Então o rapaz é algum bobo?! Encaixa-se no terceiro partido, e ainda continuaremos com o governo em casa. O tenente-coronel já não foi progressista, no tempo da Liga?
Chico Bento – Nunca. Sempre protestei contra aquele estado de coisas; ajudei o governo, é verdade, mas no mesmo caso está também o major, que foi feito comendador naquela ocasião.
Limoeiro – É verdade, não o nego; mudei de ideias por altas conveniências sociais. Olhe, meu amigo, se o virar casaca fosse crime, as cadeias do Brasil seriam pequenas para conter os inúmeros criminosos que por aí andam.
Chico Bento – Vejo que o major é homem de vistas largas.
Limoeiro – E eu vejo que o tenente-coronel não me fica atrás.
Chico Bento – Então casamos os pequenos...
Limoeiro – Casam-se os nossos interesses...
Este outro trecho, diálogo entre o objetivo Major Limoeiro e seu dedicado sobrinho, também é revelador de um pensamento que vem cruzando os Séculos:
Limoeiro – Está bom, está bom. Esquece estes sonhos de amor, que no fim de contas, são sempre sonhos, e vamos tratar da realidade. Vira-te para cá. Deixa o sol, que tens muito para ver, e responde-me ao que te vou perguntar.
Henrique – Estou às suas ordens
Limoeiro – Que carreira pretendes seguir?
Henrique – Tenho muitas diante de mim ... a magistratura...
Limoeiro – Podes limpar as mãos à parede.
Henrique – A advocacia, a diplomacia, a carreira administrativa...
Limoeiro – E esqueceste a principal, aquela que pode elevar-te às mais altas posições em um abrir e fechar de olhos.
Henrique – O jornalismo?
Limoeiro – A política, rapaz, a política! Olha, para ser juiz municipal, é preciso um ano de prática; para seres juiz de direito tens de fazer um quatriênio; andarás a correr montes e vales por todo este Brasil, sujeito aos caprichos de quanto potentado e mandão há por aí, e sempre com a sela na barriga! Quando chegares a desembargador, estarás velho, pobre, cheio de achaques, e sem esperança de subir ao Supremo Tribunal de Justiça. Considera agora a política. Para deputado não é preciso ter prática de coisa alguma. Começas logo legislando para o juiz municipal, para o juiz de direito, para o desembargador, para o ministro do Supremo Tribunal de Justiça, para mim, que sou quase teu pai, para o Brasil inteiro, em suma.
Henrique – Mas para isso é preciso...
Limoeiro – Não é preciso coisa alguma. Desejo somente que me diga quais são as tuas opiniões políticas.
Henrique – Foi coisa em que nunca pensei.
Limoeiro – Pois olha, é mais político do que eu pensava. É preciso, porém, que adotes um partido, seja ele qual for. Escolhe.
Henrique – Neste caso serei do partido de meu tio.
Limoeiro – E por que não serás conservador?
Henrique – Não se me dá de sê-lo, se for de seu agrado.
Limoeiro – Bravo! Pois fica sabendo que serás ambas as coisas.
Henrique – Mas isto é uma indignidade!
Limoeiro – Indignidade é ser uma coisa só!
Temos, sem dúvidas, uma alegoria perfeita dos interesses que envolvem o casamento entre o poder do capital e a potência da influência.
No segundo ato vemos, com direito a coro de capangas, os desdobramentos de um processo eleitoral tumultuado e frágil. Este sim cheio de brechas e passível de críticas e desconfianças. Muito diferente de nosso processo eleitoral atual, diga-se de passagem.
Os capangas, em seu coro na primeira cena, nos apresentam um panorama de sua função na dinâmica eleitoral:
“Que o voto é livre
Ninguém duvida!
Por nossos amos
Demos a vida.
Pra todo aquele
Que for canalha,
Cacete em punho,
Boa navalha.
Sejamos fortes
Em cabalar,
Que bom dinheiro
Vamos ganhar.
Pra todo aquele
Que for canalha,
Cacete em punho,
Boa navalha.”
Segundo os dicionários, a palavra “cabalar” significa aliciar (eleitores) ou obter (votos) por meios ardilosos, tortuosos ou ilícitos. Podendo também significar participar de cabala ('intriga'); conspirar, tramar.
Eu acho super curioso (e pavoroso) que esse artifício tenha virado parte das práticas das campanhas políticas.
Na trama vemos uma série de fraudes ao sistema eleitoral em busca de vantagens na contagem dos votos. Major Limoeiro, Tenente-Coronel Chico Bento e seus aliados investiram na estratégia de colocar votos a mais na urna, utilizando-se de eleitores que se passavam por outros, os chamados “Fósforos”, expressão presente até hoje no Glossário Eleitoral Brasileiro. Estes eleitores impostores votavam mais de uma vez:
Flávio – (Gritando da igreja.) Jerônimo Tabu da Silva.
2º Votante – (Saindo da esquerda.) Pronto!
Chico Bento – Tome lá. (Entrega-lhe uma lista.)
2º Votante – Olhe, compadre, só para lhe servir. É triste ser pobre. Muito custa a ganhar a vida com honra! Com esta fazem quatro vezes que voto hoje.
Chico Bento – (Vendo a lista.) Este já se pode riscar.
Limoeiro – E pode riscar também o Tenente Felício.
Chico Bento – Um dos esteios do partido da ordem!
Limoeiro – É verdade, não vota hoje, não, mas é o mesmo; mandei processá-lo, como vagabundo, por andar parado na rua de noite fora de horas.
Chico Bento – Pois fê-la bonita! Perdemos com ele toda a votação da gente da Samambaia e da Grota Funda.
Limoeiro – Grande prejuízo! Perdemos esses votos, mas ganhamos todos do Partido Liberal, sem contar com o recheio que mandei o Domingos meter na urna.
Chico Bento – Major, você é de todos os diabos.
Em meio às investidas toscas de farsa que incluíam mudanças de visual e figurino, acompanhamos um processo eleitoral violento, com atuação opressora dos capangas e compras de voto de diversas formas, inclusive com chantagem ao escravo Domingos, servo de Limoeiro, para que participasse das fraudes em troca de uma carta de alforria.
Pelo relatado na peça, o autor via isso como algo bastante corriqueiro:
Chico Bento – Será bom mandar dizer à capangada que esteja alerta.
Limoeiro – Não se incomode; ela está bem industriada. Mas tem-se trabalhado bonito, hein, tenente-coronel?!
Chico Bento – Nem por isso. Nas eleições passadas fizemos mais e não houve tanto barulho. Só o defunto Matias sacristão votou seis vezes.
Limoeiro – Isto lá pelo seu lado; porque pelo de cá foram cinco batidinhas dadas por mim. Se ele ainda fosse vivo... Coitado, Deus ponha a sua alma em bom lugar!
Durante a votação, há uma grande revolta popular. O povo, desconfiado da licitude do processo, ameaça quebrar tudo. Após muita confusão em busca de mais segurança e lisura, a urna é transferida para outro lugar, encerrando assim o segundo ato.
No terceiro ato vemos que nem mesmo a reação do povo foi capaz de frear as intenções dos dois poderosos. O objetivo foi atingido e o jovem advogado Henrique foi eleito deputado.
A sequencia de diálogos que revelam as bases da política nacional já em 1882 continua desfilando nossa podridão.
Neste ato vemos os sempre presentes traços de machismo que durante os séculos também foram se perpetuando como uma espécie de cultura doméstica e social. Além disso, os planos de poder se mostram bastante evidentes:
Limoeiro – Moço, rico, talentoso, deputado provincial aos vinte e quatro anos, futuro representante da nação aos vinte e cinco, futuro ministro aos vinte e seis, futuro chefe de partido aos trinta e futuro senador do império aos quarenta! Quando penso no futuro mais que perfeito que lhe está reservado, quase que enlouqueço de prazer! Olhe, se eu fosse pai, e tivesse seis filhas, lhe entregaria todas.
Também há sinais de que a paranoia referente a um inimigo imaginário também rendia votos. Neste caso, ao invés do atual “Fantasma do Comunismo”, o inimigo era o “Terrível Anarquismo”:
Limoeiro (Tirando um jornal do bolso.) — Vejam o que diz este jornal. (Lendo.) “Parabéns aos nossos comprovincianos. Acaba de ser eleito deputado provincial pelo 3º distrito o Senhor Doutor Henrique da Costa Limoeiro, uma das mais esplêndidas esperanças da sua terra natal. A atitude nobre, sustentada por sua excelência, nas últimas eleições, defendendo o voto livre e as garantias constitucionais contra os botes da anarquia, foi felizmente recompensada pelos dignos eleitores, que souberam colocar-se na altura de tão nobre missão.” Hein? o que dizem a isto?
Outra passagem bem interessante nos faz lembrar de práticas muito atuais:
Chico Bento – Na sua circular ele tem que apresentar um programa. Neste programa há de definir as suas ideias...
Limoeiro – E o que tem as ideias com o programa, e o programa com as ideias? Não misture alhos com bugalhos, tenente-coronel, e parta deste princípio: o programa é um amontoado de palavras mais ou menos bem combinadas, que têm sempre por fim ocultar aquilo que se pretende fazer.
Chico Bento – Porém cada partido tem a sua bandeira...
Limoeiro – Aqui para nós, que ninguém nos ouve, tenente-coronel, qual é a bandeira do seu?
Chico Bento – A bandeira do meu é... Quero dizer...
Limoeiro – Ora eis aí! Está o tenente-coronel com um nó na garganta. Meu amigo, eu não conheço dois entes que mais se assemelhem que um liberal e um conservador. São ambos filhos da mesma mãe, a senhora Dona Conveniência, que tudo governa neste mundo. O que não pensar assim deixe a política, vá ser sapateiro.
E os diálogos continuam. Como se, numa viagem no tempo, encontrássemos o nascimento do “Centrão”, ala política tão falada/criticada atualmente:
Limoeiro – O rapaz portanto, não se apresentando nem por um lado, nem por outro, fica no meio. Do meio olha para a direita e para a esquerda, sonda as conveniências, e no primeiro partido que subir encaixa-se muito sorrateiramente, até que, ainda este, ele possa escorregar para o outro que for ao poder.
Chico Bento – Sim, senhor.
Limoeiro – Vai ver como as coisas se arranjam.
E o desfile de “coincidências” é bastante extenso. Em um trecho, Major Limoeiro nos entrega essa pérola:
Limoeiro – É preciso que ele prometa o que se pode prometer, sem que se comprometa.
Em outro tentam simular um plano de governo:
Limoeiro – Onde é que tínhamos ficado?
Chico Bento – Criando escolas noturnas de duas em duas léguas. (Em outro tom.) Mas para que tanta escola, se não temos gente?
Limoeiro – É para acompanhar a moda. (Com ênfase.) As suas ideias políticas visam tão somente o progresso do Brasil, escudado na ordem e liberdade bem entendida. (Mudando de tom.) Vê isto? Progresso, ordem, liberdade... liberdade, ordem, progresso. Aí está o programa perfeitamente definido. Agora termine dizendo: o Doutor Limoeiro é deputado provincial pelo 3º distrito; espero que o amigo recomende-lo a todos os seus amigos e mande-me as suas ordens.
Neste momento do enredo, Henrique, agora deputado eleito, sente-se pressionado e desiludido pela manipulação politiqueira promovida por seu tio e seu futuro sogro. Chateado e envergonhado, anuncia que está abrindo mão do cargo e saindo da política:
Henrique – Maldita seja a hora em que se lembraram de meter-me em semelhante comédia.
Limoeiro – Ó rapaz, tu perdeste o juízo?
Henrique – Acabo de sair dos bancos da academia, do meio de uma mocidade leal e generosa, cheio de crenças, sonhando a felicidade de minha pátria, e eis que de chofre matam-me as ilusões, atirando-me no meio da mais horrível das realidades deste país – uma eleição, com todo o seu cortejo de infâmias e misérias.
Limoeiro – E ainda em cima te revoltas, tu, que começaste por onde os outros acabam!
Henrique – Não comecei, meu tio, acabei; porque o quadro que se desenrolou ante os meus olhos foi de tal natureza, que me sufocou no peito as aspirações de moço e patriota.
Limoeiro – E então, tenente-coronel, o que diz a isto?
Chico Bento – Estou abismado.
Henrique – Se queriam fazer de mim um político, por que me desiludiram tão cedo? Por que não me deram gota a gota o veneno?
Limoeiro – Então, não pretendes ir à assembleia?
Henrique – Não, senhor.
Limoeiro – Mas, rapaz, como combinar esta série de disparates que estás dizendo agora, com o que fizeste nas eleições?!
Henrique – Não me recorde esta página negra; foi uma loucura; passou.
Limoeiro – Então?
Chico Bento – Pois o senhor não tem a ambição de representar o seu país?
Henrique – E o senhor chama isto representar o país? O que é que eu represento? Quais são as minhas ideias? A que partido estou filiado? Que solução posso dar a todos os grandes problemas sociais que se agitam presentemente?
Limoeiro – Porém...
Henrique – Formado apenas há dois meses, sem experiência de vida, sem a mais pequena noção dos negócios públicos, o que vou fazer na Câmara? O papel triste e ridículo de um filhote, apresentado por um tio liberal e um futuro sogro conservador. Que manancial fecundo para os folhetins dos jornais de oposição!
Pena que essa noção que o jovem advogado demonstrou não virou parte da nossa cultura nacional. Em cada eleição somos atacados por um número incontável de candidatos despreparados que embarcam em uma aventura eleitoral sem entender que são apenas peças descartáveis neste tabuleiro cheio de reis, bispos torres e cavalos com forças e poderes descomunais.
Ao fim, o jovem que tinha tudo para ser o herói da história sucumbe diante do mais ardiloso dos artifícios de persuasão: o Amor.
Ao ser confrontado pelo desejo que sua futura esposa nutre de frequentar a Corte, o advogado se deixa levar e mantem o cargo para o qual foi eleito:
Rosinha – O senhor ama-me muito?
Henrique – Ainda o duvidas?
Rosinha – É capaz de fazer uma coisa que lhe vou pedir?
Henrique – O que pedirás tu que eu não deva fazer?
Rosinha – Veja bem; promete?
Henrique – Prometo e até juro.
Rosinha – Eu queria ir para a Corte.
Henrique – E que dúvida há nisto? Pensas porventura que desejo enterrar a tua e a minha mocidade nestas brenhas? Passaremos aqui a nossa lua-de-mel; partiremos depois para o Rio de Janeiro, e mais tarde iremos ver o velho mundo, que é o objeto constante dos meus sonhos.
Rosinha – Há, porém, uma condição em tudo isso.
Henrique – Qual é?
Rosinha – É que desejo ir como a mulher do senhor Deputado Limoeiro.
Henrique – Por que me falas de política quando te falo de amor?
Rosinha – Porque a política dar-te-a a posição, e eu quero ver-te um grande homem.
Henrique – Compreendo. Meu tio, depois de haver tentado plantar em meu peito a ambição, procura agora arraigar no teu a vaidade! Se o não estimasse como um verdadeiro pai, e se não visse que tudo quanto ele tem feito é com as melhores intenções, diria que a serpente procura Eva para tentar Adão.
Rosinha – Lembre-se, porém, que prometeu...
Henrique – E a minha palavra não volta atrás. Partirei como deputado, e envidarei todos os esforços para bem cumprir os meus deveres.
Limoeiro (Escondido, escutando ao fundo) — Bravo!
Henrique – Levo, porém, desde já a convicção de que a descrença, mais tarde ou mais cedo, me fará tragar a taça dos dissabores. E então para onde apelar?
Rosinha – Para este coração que te adora.
Henrique (Abraçando-a) — Rosinha, és um anjo!
Limoeiro – Vitória! Vitória!
Portanto, na peça de França Júnior, assim como na vida real e cotidiana no decorrer dos últimos cento e quarenta nos, o candidato a herói acaba se rendendo diante do poder de articulação das velhas raposas a serviço da desigualdade e dos ganhos particulares.
Encerro a coluna de hoje com a esperança de que, em meio a tanta lama, possa florescer lindas flores de lótus em forma de candidatos eleitos pelo sincero comprometimento com a sociedade.
A realidade é dura, mas precisamos continuar atentos para que nossa percepção sobre o que é certo possa aproximar os bons candidatos da ponta de nossos dedos no teclado da urna eletrônica. Esta sim, livre do fantasma das fraudes, mesmo com toda a desconfiança dos mal intencionados.
Vai lá! Vota!
Vota com esperança.
Vota, acima de tudo, com consciência da realidade.
Vota para afastar todos os Limoeiros e Chico Bentos das instâncias de decisão dos nossos destinos!
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